Para colorir o panorama do queijo brasileiros de todas as tonalidades de azul, Múcio Furtado vem ensinar sua receita no programa técnico do Mundial do Queijo do Brasil.

Especialista e autor de extensa obras sobre queijo, ele acaba de lançar o Receituário dos Queijos Brasileiros, livro com 50 receitas. Confira abaixo entrevista com Múcio publicada na revista Profissão Queijeira nº 6.

>> Como você vê a emergência dos queijos artesanais no cenário queijeiro brasileiro? É verdade que você não ama queijo de leite cru?

Múcio: Isso não é verdade. Cresci comendo estes queijos em Carrancas. Admiro gente que faz um bom queijo artesanal, mesmo de leite cru. Mas tem gente que nasceu para fazer bons queijos, outros nem tanto. É preciso paciência, arte e ciência para fazer um bom queijo artesanal, de leite cru ou não. Pressa e fabricação de queijos não combinam. Como diz o milenar ditado chinês, uma mulher grávida pode ter um filho em 9 meses, mas 9 mulheres não podem ter 1 filho em um mês. É a diferença entre o queijeiro e o “queijista” para mim. Este último é o apressado, sem paciencia. Em décadas de trabalho com queijos, minha opinião sobre o artesanal é muito particular. Eu evito me envolver com queijo artesanal. É um universo ainda muito complexo no Brasil. Há pessoas genuinamente de boa índole e outras com interesse mais comercial, intermediários ou atravessadores para quem a prioridade comercial dominou a paixão queijeira.

Queijos artesanais da Belafazenda. FOTO: João Pedro Lourenço Neto

>> Mas você viaja muito de moto, uma das suas paixões. Deve cruzar bons queijos…

Múcio: Sim, claro. Piloto muito minha Indian e minha Harley-Davidson em Minas Gerais. Há pouco tempo fui a Alagoa, onde conheci o Chico Humberto, que faz um queijo meio parecido com o mimolette francês, com ácaros. Fui lá ver de perto, é um bom queijo! Porém, nesta mesma região há queijos duros bem conhecidos, mas comercializados sem maturação suficiente. Por isso acabam não tendo boas características sensoriais.

Não estou dizendo que lhes falta qualidade por serem de leite cru. Mas que falta tempo de maturação e falta padrão. Vários produtores não conseguem reproduzir as mesmas características a cada fabricação. Sou Juiz do Concurso Americano de Queijos, promovido anualmente pela American Cheese Society. Lá muitos dos queijos que ganham prêmios são do estado de Vermont, são de leite cru e plenamente maturados. Lá existe a consciência da necessidade de curar um queijo duro. Mas nem por isso,eu acredito que queijo artesanal deva ser feito somente com leite cru.

>> Quais outros exemplos de bons queijos artesanais para você?

Múcio: Paulo e Rosana da Fazenda Atalaia, em Amparo-SP, fazem o queijo Tulha de leite pasteurizado e fermentos. O arcabouço artesanal deles é a maturação em um ambiente rústico interessante. Menciono ainda a amiga Heloisa Collins, que faz ótimos queijos de cabra pasteurizado em Joanópolis-SP. Ela inova no trabalho com fungos comerciais. Temos queijos artesanais excelentes, como os de Carolina Vilhena da Bela Fazenda em Bofete-SP, que transforma leite cru e pasteurizado com fermentos. Ela tem padrão. Ou ainda a Vanessa Alcolea da Pardinho Artesanal, em Pardinho-SP. Fazenda certificada livre de tuberculose e brucelose que produz grandes queijos em processo artesanal, com leite cru e fermentos.

Certamente há fabricantes bons que não conheço. Os bons artesanais são rigorosos com qualidade do leite e sanidade do rebanho, conseguem ter padrão em características bem típicas das fazendas. Fico feliz de ver produtores artesanais que enobrecem o setor. Falo no meu livro Arte e Ciência do Queijo, de 1990: um bom queijo resulta do equilíbrio de arte, trabalho manual e cuidados, com a aplicação do conhecimento tecnologico, sem abrir mão da essencia: a paixão pelo fazer bem feito e em pequena escala.

>> Mas você fala também em deturpação do artesanal…

Múcio: Brinco que no Brasil um dos culpados da deturpação do que se considera verdadeiramente artesanal é o fungo Geotrichum candidum, muito comum na natureza, contamina facilmente um queijo feito com leite cru e sem maiores cuidados na sua elaboração. A casca fica toda enrugada, com aspecto de “queijo francês”.

O consumidor desavisado considera chic e “fashionable”, não hesita em pagar caro por um queijo muitas vezes simplório, apenas recoberto por esses fungos livremente achados no “terroir”. Qualquer queijo feito sem o menor cuidado, se for deixado em uma prateleira, vai se encher de mofos que variam dia a dia. Considero uma pena algumas pessoas acharem isto “queijo artesanal”: um queijo que conta com a sorte esporádica da biodiversidade sem controle.

>> Qual seu conceito de queijo artesanal?

Múcio: Uma série de conceitos juntos. Queijo artesanal tem a ver com o tamanho
da operação, em pequena escala. Um volume que não deveria passar de 3 ou 4 mil litros/dia. Tem a ver com a maneira de fazer, a dedicaçao diária. O elemento humano é muito mais importante e presente do que o maquinário em volta. É a nobreza do ato de poder colocar a mão no queijo. Conscientemente poder desenvolver sabores e aromas.

Cru ou pasteurizado, em todo o caso queijo artesanal deve ser feito com leite de boa qualidade (inferior a 50 mil germes/ml), rebanho certificado e pode conter a microbiota (bactérias e fungos) natural daquele ambiente, o chamado “terroir”, personalidade única daquela produção local. Mas isso não exclui o uso de fermentos industriais quando necessários. Às vezes a CBT é tão baixa, tão reduzida (leite de primeirissima qualidade) que é preciso complementar com fermentos.

“Considero uma pena algumas pessoas acharem isto “queijo artesanal”: um queijo que conta com a sorte esporádica da biodiversidade sem controle.”

>> Se tornam leites “sem alma”, não é?

Múcio: O ambiente pode ser pulverizado com fungos comerciais, como para queijos mofados externamente. Para ter alma, o real queijo artesanal deve ser curado sem embalagens, ter boa formação de casca, seja ela lisa, mofada, enrugada ou “melosa”, como as cascas com B.linens.
É primordial que queijos artesanais, feitos em seu próprio “terroir”, tenham padrão. Eles não têm que se referenciar a nenhum “queijo tipo”, pois têm identidade própria, não pode ser recriado fora de seu terroir. Não se pode fazer um bom queijo curado se não houver equilíbrio entre arte e ciência aplicada.

Há queijos processados industrialmente espetaculares em termos de qualidade e padrão, mesmo sendo produzidos em fábricas enormes . São ótimos queijos e tem identidade própria. Tudo resulta da aplicação de boa tecnologia, aliado ao uso de leite de boa qualidade. No Brasil temos boas fábricas que produzem queijos muito bons.

Acompanhe as aventuras motoqueiras e queijeiras de Múcio no Instagram @mucio.furtado

>> Fale mais do seu próximo livro…

Múcio: O “Receituário Brasileiro de Queijos” tratará da descrição do processo dos queijos feitos no Brasil. Cada queijo tem sua receita, história, defeitos frequentes, fermentos adequados e pontos cruciais. Eu vi a necessidade no Brasil de criar uma tecnologia básica, para inspirar as pessoas. Será um manual de orientação e consulta, porque receita de queijo não pode estar escrita na pedra. Damos uma tecnologia de referência e cada um se adapta. Terá o requeijão culinária, o cremoso, gorgonzola italiano dolce, port salut, são 50 receitas e 150 fotos. Seria lançado na Minas Láctea em julho de 2021, foi cancelado, vamos lançar virtualmente.

“Queijo artesanal tem a ver com o tamanho da operação, em pequena escala. Um volume que não deveria passar de 3 ou 4 mil litros/dia.”

>> Quais seus planos para o futuro?

Múcio: As pessoas me perguntam até quando vou trabalhar com queijo. Respondo brincando que não sei se será 3 ou 6 meses após a morte…. Só sei que o que escrevo sobreviverá à mim, espero que siga sendo util aos queijeiros. Eu gostaria de continuar trabalhando com queijos por muitos anos. Não sonho com aposentadorias. Dizem que sou dono de uma certa “licença poética”. Sem duvidas eu ajudo a minha empresa a vender, mesmo que em minhas palestras eu não tenha o habito de fazer referencias comerciais a nossos fermentos. Acho que um dos sentidos da vida é criar e assim vou levando minha vida, fugindo da mesmice e tentando ser criativo a meu jeito.

Múcio Furtado, 68 anos, entrou na ILCT em 1968, ao 15 anos e lá começou a trabalhar em 1971. Nasceu em Carrancas e cresceu comendo queijo de leite cru que sua mãezinha comprava naquela cidadezinha do Sul de Minas. Ele trabalha na IFF (anteriormente Danisco/DuPont) desde 2001. Hoje está na divisão Nutrition & Biosciences da IFF Brasil, em Alphaville, Baruerí, na grande São Paulo, onde exerce a função de Senior Principal Application Specialist dando apoio às industrias queijeiras de toda América Latina.

Este workshop acontecerá no dia 04/06, das 14h às 17h no Salão do Tauá Grande Hotel e Thermas de Araxá.